quarta-feira, dezembro 16, 2009

Introdução Ao Cinema Policial Brasileiro


Não se enganem com o cinema policial brasileiro.‭ E‬le é muito maior do que supõe o etnocentrismo invertido dos cultuadores de filmografias das Ilhas Shetland, Orkney e Faroe.

‭O ‬gênero é tão rico que abarca sutilezas como o suspense,‭ o drama‬ de costumes,‭ ‬a metalinguagem jornalística e até o épico. Pseudocríticos de Ipanema,‭ estudantes‬ reacionários da Uniban e mestrandos preguiçosos da Puc nunca se animaram a contextualizar este fenômeno.‭ ‬Na verdade, a maioria das pessoas que falam e escrevem (mal) sobre cinema no país nem imaginam o que há por trás da nossa filmografia.‭

Como disse:‭ ‬não se enganem com o cinema policial brasileiro.‭ Entendam sobre ele como os italianos entendem sobre gialli. Lambuzem-se disso como um fenômeno cultural,‭ que teve seu apogeu‬ ligado à brutalização do cotidiano urbano -- gerada pela ditadura militar --‭ impondo até os dias atuais ‬um edifício de original criação.‭

Muito mais do que outros gêneros,‭ ‬o cinema de crimes expôs a realidade com uma volúpia surpreendente.‭ ‬Ali estão retratadas todas as classes sociais.‭ ‬Ali está documentado o início desse caos que joga granada,‭ ‬que incendeia ônibus,‭ ‬que hoje produz crônicas de semi-guerra civil como‭ "‬Tropa de Elite‭" (‬2007‭) ‬e‭ "‬Salve Geral‭" (‬2009‭)‬.‭ ‬Visionário,‭ ‬nas entrelinhas do policial brasileiro sempre esteve a alegoria do Brasil do futuro.‭

Quando no lançamento de‭ "‬Tropa de Elite‭" ‬os vigilantes do politicamente correto apontavam o filme como‭ "‬fascista‭"‬,‭ ‬não pude conter a seguinte ruminação:‭ ‬para chegarmos ao Capitão Nascimento,‭ ‬esqueceram de Mariel Mariscott.‭

Sim,‭ ‬porque fascismo estava no elogio à força em um regime de força,‭ ‬como foi‭ "‬Eu Matei Lúcio Flávio‭" (1979)‬.‭ ‬À parte todas qualidades,‭ ‬o fenômeno‭ "‬Tropa de Elite‭" ‬é o retrato de uma sociedade que perdeu,‭ ‬que se entregou.‭ Já o petardo de Antônio Calmon‭ – ‬sob a égide do mesmo símbolo da caveira‭ – ‬presta homenagem àqueles que venciam.‭ C‬omparação entre uma obra e outra rende interessante miríade do que mudou em trinta anos.‭

E muito além da apologia aos esquadrões da morte,‭ ‬da fraqueza ou fortaleza de‭ "‬heróis civilizadores‭"‬,‭ ‬a câmera trocou principalmente seu foco:‭ ‬era varejista,‭ ‬virou atacadista.‭ ‬O indivíduo,‭ ‬o drama corriqueiro,‭ ‬perdem cada vez mais espaço para o problema social,‭ ‬a apresentação de uma causa fatalista,‭ ‬sem uma saída de livre arbítrio.

Neste aspecto,‭ "‬Salve Geral‭"‬,‭ ‬por exemplo,‭ ‬dialoga melhor com a velha tradição:‭ ‬um paralelo entre Lúcia,‭ ‬personagem de Andréa Beltrão,‭ ‬e tantas outras figuras de outrora é possível,‭ ‬para não dizermos necessário.

Há de se estudar igualmente no policial a geografia,‭ ‬amada e fetichizada em paradoxo à sua degradação.‭ ‬Voltando a‭ "‬Eu Matei Lúcio Flávio‭", ‬quando é levado para a polícia, Mariel Mariscott ganha de presente uma explicação sucinta sobre Copacabana.‭ ‬Assim Calmon aproveitou para filmar as ruas,‭ ‬os edifícios,‭ ‬os habitantes,‭ ‬com irônica reverência.‭

‭"‬Beijo na Boca‭" (‬1982‭), ‬"Amor Bandido‭" (‬1979‭)‬,‭ ‬e‭ "‬O Sequestro‭" (‬1981‭) ‬manipulam de tal forma o meio,‭ ‬que exigem quase um pré-conhecimento deste para melhor fruição. ‭"‬Amor Bandido‭"‬,‭ ‬de Bruno Barreto,‭ ‬foi antes de tudo sobre o avesso de Copacabana.‭ "‬Beijo na Boca‭" ‬apresenta aos espectadores o‭ ‬lúmpen que reside na comercial Cinelândia.‭ ‬A sequência de abertura de‭ "‬O Sequestro‭" ‬não deixa dúvidas:‭ ‬uma colagem de cenas do‭ ‬bas-fond,‭ ‬da Praça Mauá à Prado Júnior,‭ ‬introduz a história em atmosfera de pesadelo.‭

No caso do policial paulistano‭ ‬esta característica se dilui,‭ ‬embora diretores como Clery Cunha tenham se utilizado do recurso‭ – ‬o épico‭ popular "‬Rei da Boca‭" (‬1982‭) ‬foi totalmente realizado em locações reais,‭ ‬ombro a ombro com protagonistas da vida real.‭ Obras ‬recentes,‭ ‬como‭ “‬O Invasor‭” (2002)‬,‭ ‬trafegam com desenvoltura por São Paulo,‭ ‬embora romantizem a cidade e seus espaços de forma menos direta.‭

Pela terceira vez,‭ ‬leitores,‭ ‬não se enganem com o cinema policial brasileiro.‭ ‬Ele permite muitas e tantas outras leituras,‭ ‬muitas e outras tantas análises:‭ ‬do‭ ‬kitsch de seu artesanato à beleza imperfeita de suas mulheres‭; ‬da relação asfalto-morro de‭ "‬Terror e Êxtase‭" (1978) ‬ao confronto de gerações em‭ "‬Anjos e Demônios‭" (1970)‬.‭ ‬Da imersão por nomes consagrados‭ – "‬O Descarte‭" (‬1973‭)‬,‭ ‬de Anselmo Duarte e‭ "‬O Marginal‭" (‬1975‭) ‬de Carlos Manga‭ – à‬ utilização de cenários paradisíacos como a Fortaleza de‭ ‬1976,‭ ‬em‭ "‬O Homem de Papel‭"‬.

Neste paradoxo de liberdade, a alucinação de "Paranóia" (1976) oferece abrangentes senhas, desde o flerte com a literatura -- parece bastante com "Feliz Ano Novo", conto de Rubem Fonseca -- até uma visão sociológica de que a articulação do crime comum, durante a ditadura, foi a verdadeira revolução que os militares não conseguiram dissolver.

Abusado, o policial brasileiro já arrombou até porta de eleição: "A Próxima Vítima"(1982), de João Batista de Andrade, contrastava a festa em tempo real para o deprimente submundo do Brás.

Como uma profetisa louca no Viaduto do Chá, uma pastora de camburão, eu poderia pregar durante horas, centenas de exemplos em filmes que têm muito a nos avisar. Pois enquanto beliscam frango à passarinho nas ardentes praças do Rio,‭ ‬enquanto debatem orelhas de Schopenhauer na Vila Madalena,‭ ‬críticos,‭ ‬cinéfilos e acadêmicos vivem em um mundo de pequenas delicadezas, de rubores pudicos, ignorando tesouro clamando por teses,‭ dissertações‬ e reconhecimento.‭

Pela última vez, leitores: nunca se enganem com o cinema policial brasileiro. Em um país com 45 mil homicídios por ano, fratricida e sitiado, temos vivo, pulsante, histórico, esse gênero nacional por excelência.

13 comentários:

Adilson Marcelino disse...

Querida Andrea,
Você não vai acreditar, mas ia te sugerir fazer um olhar sobre o cinema policial brasileiro.
Nem acreditei agora vendo seu texto.
Um beijo

Andrea Ormond disse...

Adilson querido, é o inconsciente coletivo em ação rsrs Sugestão atendida ;) Beijo

Anônimo disse...

Andrea, só não digo que me surpreendi com este post porque leio seu blog desde sempre e já esperava por um texto deste porte. Parabéns! Esta sua necessária e maravilhosa introdução ao cinema policial brasileiro me deixou com água na boca e com uma imensa vontade de ler mais e mais sobre o assunto. Você já vem há algum tempo se dedicando a escrever (sempre com muito talento e com execelentes sacadas)sobre o gênero policial. Estou certo de que seus leitores também aguardam ansiosos pelos próximos capítulos. Quem sabe um livro especifico sobre o tema?

Márcio/MG

Anônimo disse...

FILMOGRAFIA - CINEMA POLICIAL NACIONAL - ORDEM CRONOLOGICA:

Decada de 60

1961
Ladrão em noite de chuva – de Armando Couto
Mulheres e espiões - Jorge Ileli

1962

Assassinato em Copacabana – de Eurides Ramos
Assalto ao Trem Pagador – Roberto Farias
Tocaia no Asfalto – do Roberto Pires
O Vigilante rodoviário – do Ary Fernandes

1963
Crime no Sacopã – Roberto Pires
Interpol chama Rio – Leo Fleider (co produção com Argentina)
Noites quentes em Copacabana – Horst Hachler – co produção com a Alemanha)

1964
O vigilante contra o crime – Ary Fernandes



1965

A morte por 500 milhões – Antonio Orellana
Crime de Amor – de Rex Endsleigh.


1966
Paraíba, Vida e morte de um bandido – de Victor Lima

1967
O Anjo Assassino – de Dionísio Azevedo
Mineirinho Vivo ou Morto – de Aurélio Teixeira
O caso dos irmãos Naves – do Luiz Sergio Person (filmaço – baseado em fatos reais)
O Grande Assalto – de Adolpho Chadler
Perpetuo contra o Esquadrão da Morte – Miguel Borges

1968
Massacre no Supermercado – J.B. Tanko
Os viciados – do Braz Chediak
O bandido da luz vermelha – do Sganzerla (vide tópicos na comunidade dele)


1969
A um pulo da morte – de Victor Lima
Os Marginais – filme com episódios
Tempo de Violência – de Hugo Kusnet
Os Raptores – Aurélio Teixeira
O matador profissional – do Jece Valadão
Mascara da Traição – do Roberto Pires
Sete homens vivos ou mortos – do Leovigildo Cordeiro
Marcado para o perigo – de Ary Fernandes (serie O vigilante rodoviário)

1970
Vida e Gloria de um canalha – do Alberto Salvá
Pedro Diabo Ama Rosa Meia Noite – Miguel Farias Jr.
Caveira My Friend – do Alvaro Guimarães (este já do cinema marginal – vide tópico:

http://www.orkut.com.br/CommMsgs.aspx?cmm=64176&tid=2590061954641526816&kw=alvaro+guimaraes


1971
Nenê Bandalho – do Emilio Fontana (este do cinema marginal – vide tópico:
http://www.orkut.com.br/CommMsgs.aspx?cmm=64176&tid=2591927127941677088&kw=emilio+fontana

****

O Sergio Augusto, no seu artigo, ainda lista os seguintes filmes:


A Grande Cidade – do Caca Diegues – de 1965
Procura-se uma Rosa – do Jece – de 1965
A lei do cão – do Jece Valadão – de 1967



Década de 70:

Pedro Diabo – do Miguel Faria Junior – de 1970

A culpa – Domingos de Oliveira – de 1971


Missão: Matar! – de Alberto Pieralise – de 1972

O descarte – do Anselmo Duarte – de 1973
Êxtase de sádicos – do C. Adolpho Chadler – de 1973

O amuleto de Ogum – do Nelson Pereira dos Santos – de 1974
A rainha diaba – do Antonio Carlos Fontoura – de 1974
O filho do chefão – do Victor Lima – de 1974
O Marginal – do Carlos Manga – 1974

Nós os canalhas – do Jece Valadão – de 1975
A Extorsão – do Flavio Tambelini – de 1975



Paranóia – Antonio Calmon – de 1976
Ódio – Carlos Mossy – de 1977
As amantes de um canalha – do Tony Vieira – de 1977
Revolver de Brinquedo – do Antonio Calmon – de 1977
Lucio Flavio, o passageiro da agonia – do Babenco – de 1977
Barra Pesada – do Reginaldo Farias – de 1977
Os amores da Pantera – do Jece – de 1977


Desejo violento – Roberto Mauro – de 1978
Amor bandido – do Bruno Barreto – de 1978

A lira do delírio – do Walter Lima Junior – de 1979
O caso Claudia - Miguel Borges – de 1979
Republica dos Assassinos – do Miguel Faria Jr. - de 1979
Eu matei Lucio Flavio – do Antonio Calmon – de 1979 (com o Jece e super erótico)
O esquadrão da morte – do Carlos Imperial – de 1979
Ato de violência – do Eduardo Escorel – de 1979



80:

Pixote – do Babenco – de 1980


***

ABRX

mrlx

Andrea Ormond disse...

Obrigada, Márcio :) Resolvi escrever esse texto introdutório pois as informações estavam muito pulverizadas no filme a filme. Assim, o leitor q se interessar sobre o tema já tem uma porta de entrada. E como é assunto q nunca se esgota, pode render muito mais material, inclusive quem sabe, um livro...

Mrlx, lista interessante, percebi a ausência de alguns nomes da Boca, como o Clery Cunha.

Fofão disse...

Sensacional como sempre, Andrea. Ainda mais porque ontem mesmo vi "Os Desclassificados", e constatei que o Clery já estreiou arrebentando.

Unknown disse...

Olá, Andréa. Tudo bem?
Trabalho na Programação do Canal Brasil e gostaria de lhe dar a boa notícia de que iremos exibir Soninha Toda Pura em fevereiro de 2010.
Grande abraço e parabéns pelo site,
Henry

Anônimo disse...

O PADRE, A MOÇA

7.

Quando lhe falta o demônio
e Deus não o socorre;
quando o homem é apenas homem
por si mesmo limitado,
em si mesmo refletido;
e flutua
vazio de julgamento
no espaço sem raízes;
e perde o eco
de seu passado,
a companhia de seu presente,
a semente de seu futuro;
quando está propriamente nu;
e o jogo, feito
até a última cartada da última jogada.
Quando. Quando.
Quando.


Carlos Drummond de Andade - Lição de Coisas - Ato

Jorge disse...

Parabéns Andrea por mais um texto magistral, desta vez sobre um gênero tão rico do nosso cinema como o filme policial.

Claro que o artigo não tem a pretensão de esgotar o assunto, mas aproveito para mencionar outros filmes a merecer uma resenha sua: "Retrato Falado de uma Mulher sem Pudor" e "Olhos de Vampa", além de outros já contemplados como "Sexo e Sangue" e "O Outro Lado do Crime".

Feliz 2010 atrasado.

Andrea Ormond disse...

Pois é, Renato. A indústria do vhs (e a do dvd menos ainda) não foi muito pródiga com os filmes nacionais. Houve mais confete e carnaval com os pornográficos, o que ajudou a aumentar a associação entre filme brasileiro e sexo (para usar uma expressão mais educada).

Fofão, "Os Declassificados" é filmaço. Se encontrar "O Rei da Boca", tb do Clery, confira.

Obrigada, Henry. E belíssima notícia para 2010. "Soninha Toda Pura" deve ser anunciado com tapete vermelho. Grande abraço

Beto Brandão, esse "quando" ecoa...

Obrigada, Jorge. Como vc disse, o texto somente não esgota o assunto, somente aponta um norte, indícios para começarmos pesquisa e debate amplos. Na diversificação do cinema policial brasileiro é que surgiram as saídas fáceis, elas cansam menos a mufa e acabam criando teses equivocadas. Abraços e um feliz 2010 para todos nós.

Luiz com Z disse...

E não esqueçamos que o cinema brasileiro foi praticamente fundado pelo cinema policial! Tudo bem, os primeiríssimos documentários eram filmagens de ruas, de multidões, mas o pessoal só começou a se acotovelar pra assistir, inventando os sucessos de bilheteria do país, com os primeiros cinejornais sobre crimes, que logo ensejaram os policiais ficcionais ou "baseados em histórias reais". :)

André Setaro disse...

Considero 'Mulheres e milhões' (e não 'Mulheres e espiões', que não existe, perdão pela errata), de Jorge Ileli, um dos mais espetaculares filmes policiais brasileiros de todos os tempos. Ileli, cineasta esquecido, década mais tarde, faria 'Viver de morrer', também um bom filme dentro dos limites de seu gênero. Lembrei-me de um filme atípico: "Um morto em Copacabana", que foi dirigido, por incrível que pareça, por Watson Macedo, especialista em chanchadas e filmes carnavalescos. Mas nunca se pode esquecer, também, 'O quinto poder', de Alberto Pieralisi.

No mais, cara Andrea, lê-la é aprender.

Andrea Ormond disse...

Luiz, a diferença está no fato de que uma estética de violência foi se sobrepondo ao registro. Nos anos 70 isto explodiu, daí a relevância do período.

André, Ileli, W. Macedo e Pieralisi confirmam a multiplicidade de gêneros em que os diretores se metiam no cinema brasileiro. Sem as etiquetas, que hoje são pouco combatidas. Um abraço, obrigada.