sexta-feira, dezembro 04, 2009

O Mau Caráter


Uma das coisas que lamento nesta vida de cinema brasileiro é não ter conhecido pessoalmente Jece Valadão. Entrevista sonhada desde sempre, o tempo foi passando e não o procurei, principalmente porque ele morava aqui em São Paulo e eu ainda no Rio de Janeiro.

A notícia da sua morte, em novembro de 2006, significou tanto que dias depois escrevi "A Noite do Meu Bem", um dos meus textos preferidos, como forma de contextualizar o agradecimento que gostaria de ter prestado a ele e a tantos outros que se foram.

É um ensaio -- e minha profissão de fé -- sobre como desconhecemos e desperdiçamos a memória de nossa filmografia -- e em como essa perda estava resumida no luto a Jece, nos filmes em que atuou, produziu e dirigiu.

Mestre do cinema popular, entre os anos 60 e 70 quase tudo que tocava virava ouro. Assim em 1974 escreveu, produziu, dirigiu e estrelou em "O Mau Caráter", comédia atualíssima e repleta de subtextos. A história do gerente de uma loja de automóveis, que se passa por guru tibetano na alta sociedade, parece saída de uma vinheta do Superpop, programa que sua enteada, Luciana Gimenez, apresenta na Rede TV!.

A mãe de Luciana, Vera, faz a dondoca Camila Moncovil, filha de um aristocrata falido (Rodolfo Arena), cujo lema é: "Aparências, o mundo vive de aparências!". O trio cria uma espécie de seita, onde pontifica o Mestre Benedi Hashiri, melhor dizendo Baby, melhor dizendo o picareta Benedito -- Jece, o mau caráter do título. Aproveitando-se da moda oriental hippie, Baby dá uma folheada em livros sobre o Tibet (?) e passa a servir de guia espiritual para uma multidão de otários, ao som de Ravi Shankar.

Misturando Índia com Dalai Lama, os "ricos" frequentam ambientes surreais como a Churrascaria Rincão Gaúcho. E para ser aceito nesse meio, Baby costura a marca "Dijon" em paletós fuleiros. Se era marketing, foi bastante bem bolado. Na necessidade de traje a rigor, o trio arma até golpe envolvendo um peru vivo e um smoking Christian Dior -- novamente a marca é explicitamente citada.

Apesar do esforço de vestuário, a fotografia e a iluminação toscas envelheceram mal -- abaixo da média dos filmes populares de sua época. Nem a trilha sonora é das melhores: salvo as cítaras e um embalo ao som de "Getting Better", dos Beatles, a música faz pouca falta.

O que devemos observar em "O Mau Caráter" é principalmente o carisma magnético do protagonista, além do roteiro ótimo. Já nos diálogos esbarramos com outro problema: a quantidade de piadas racistas em relação a Creolina, secretário do guru, fere bastante a normalidade.

E, por favor, leitores, não estou sendo politicamente correta. Apenas havia um limite, que parece ultrapassado. Mesmo em 1974 esse limite existia. E incomoda o coadjuvante tratado pela alcunha de "macaco" e diminuído pela cor.

Se fechamos os olhos a essa lástima, coleção interessante de chistes sobrevive: ainda no vestibular para o "society", Baby lê "Vinte Anos de Caviar", bíblia de futilidade escrita por Ibrahim Sued. E suas idéias como guru -- sem ironia -- parecem proféticas da auto-ajuda que contaminaria o mundo nas décadas seguintes.

Rodolfo Arena fornece ainda "embasamento téorico", em pérolas como "Dogmas são importantes. Sem mistério, não há religião". Passe na banca de jornal ou em prateleiras das livrarias em 2009, que você vai encontrar coisa parecida à venda. Com a diferença que o Barão de Moncovil sabia-se um enrolão ordinário.

Lançado no dia 25/11/1974, "O Mau Caráter" foi feito sob medida como filme de férias. Não teve grande sucesso, mas deixou argumento hilariante -- a ser revisto pelo cinema brasileiro. Coloquem Márcio Garcia no papel de Jece, rearranjem o figurino e, como em uma das mágicas do guru, surgirá uma crônica do presente. Porque os idiotas envelhecem, mas a idiotice é dom universal, força pairando acima do tempo.

5 comentários:

Adilson Marcelino disse...

Querida Andrea,
Que inacreditável resgate.
Nunca tinha ouvido falar sobre esse filme.
O baú do cinema nacional é realmente inacreditável!
Bjs

Andrea Ormond disse...

Querido, o melhor é que a gente sabe que de onde saiu esse, tem sempre muito mais :) Bjs

Andrea Ormond disse...

Oba, Renato, que ótimo, já está rolando aqui. Nos presenteie sempre com essas pérolas :) Gostou da frase? Quem sabe eu não arrumo um turbante e não viro também gurua? rsrs

Luz Taylor disse...

REnato desculpe a demora de muitos anos mas so vi esta mensagem agora, eu estava procurando o compacto do Marcio Lott mas existe um LP da Trilha sonora e se existe alguem pode me mandar um link? Muito obrigada. Otimo blog Andrea adoro cinema!

Anônimo disse...

Acho que a novela O Astro foi baseada nesse filme... ��
Rodrigo 1176