segunda-feira, setembro 12, 2016

Como Ganhar na Loteria Sem Perder a Esportiva



Félix, Carlos Alberto, Brito, Piazza, Everado, Clodoaldo, Gérson, Jairzinho, Tostão, Pelé, Rivelino. No alvorecer dos anos 70, quase todo brasileiro sabia repetir esse mantra de cor. Era a escalação do escrete canarinho, que havia acabado de ganhar a Copa do México. Dizia-se que nunca mais outro técnico conseguiria repetir a façanha de montar um time tão vertiginoso. Zagallo, que herdara a seleção de João Saldanha, estava realmente no lugar certo na hora certa. Mas, passados alguns meses, em 9 de fevereiro de 1971, outra seleção imbatível apareceria, só que nos cinemas: "Como Ganhar na Loteria Sem Perder a Esportiva" é, de longe, o maior elenco já reunido em um filme brasileiro. 

O croata J.B. Tanko, com uma mãozinha de Herbert Richers e o auxílio luxuoso, no roteiro, de Flávio Migliaccio e Gilvan Pereira (diálogos de Nelson Rodrigues!) colocaria nas quatro linhas da tela: Costinha, Agildo Ribeiro, Paulo Porto, Procópio Ferreira, Otelo Zeloni, Fregolente, o próprio Migliaccio, Rodolfo Arena, Wilson Grey, Maria Della Costa, Renata Fronzi e tanta gente que formaria uns dois ou três times brilhantes, sem suar a camisa. Foram mais de cinquenta atores, para falar de um assunto que era moda na época: a febre da Loteria Esportiva.

Tentativa ordenada do Governo Militar para enfrentar o ilegal jogo do bicho, a loteria em que o apostador investia 2 cruzeiros, e precisava acertar o resultado de 13 partidas de futebol, atingiu proporções inimagináveis no decorrer da década. Histórias de suicídios, riquezas e ruínas instantâneas eram comuns. E o cinema não poderia deixar de explorar o filão. No mesmo período, estrearam "O Barão Otelo No Barato dos Bilhões", de Miguel Borges, e o curioso "O Bolão", que tinha no elenco o cantor Taiguara. Nenhum desses, no entanto, sequer arranha o espetáculo que é o filme de Tanko.

A sorte de "Como Ganhar na Loteria..." vai além de ter conseguido reunir alguns dos maiores comediantes brasileiros, em sua melhor forma. Passa também por olhar o país em um momento otimista, quase eufórico. As cenas de abertura com "Cidade Maravilhosa", o hino do Rio de Janeiro, são quase uma epígrafe. Há um indisfarçável amor pelo Brasil e pela vida nacional, bem ao gosto da pauta do governo Médici. Àquela altura inebriados pelo tricampeonato e pelo chamado "milagre econômico", os 90 milhões de brasileiros “em ação” não sabiam o que os esperava no futuro. Também não sabiam – ou fingiam não saber – que os discordantes ao governo eram censurados ou iam em cana. Para o cidadão médio, o país parecia andar nos trilhos. Se um dia cravasse 13 pontos, o lucro seria ainda maior.

Aviões da Cruzeiro no Santos Dumont, radinhos de pilha com capa marrom de couro (sem capinha, os rádios ostentavam uma nudez triste), cigarro com filtro ainda era novidade. Direto das cracundas do Programa Flávio Cavalcanti, o delegado Nelson Duarte. Em cinco minutos de "Como Ganhar na Loteria..." volta todo um ethos, fantasmas do mundo que morreu. Apesar de estarmos no Rio, aqueles escritórios em madeira laminada, típicos da decoração modernista, eram a cara de Brasília nos anos 60. Saindo do escritório – em que estavam reunidos Paulo Porto e Otelo Zeloni – a cidade fervia: Flávio Migliaccio é um mendigo que sonha tirar os 13 pontos para comprar os Arcos da Lapa, onde já vive em um cantinho. “Por que os Arcos?”, um colega de infortúnio pergunta: “O sonho da casa própria!”, responde.

Perto dali, o rendez-vous, em que pontifica Costinha, bicha louquérrima. Que o século XX tivesse que acabar, nos conformamos. Mas Costinha nunca poderia ter morrido. Um homem que só fazia o bem. Até “Eu Também Quero Mocotó”, do V Festival Internacional da Canção, ele canta. Vemos ainda uma família em pedaços, comandada por Fregolente açoitando a empregada, com arroubos verbais que em 2016 lhe colocariam na cadeia. Mas Deus escreve certo por linhas tortas: o desgraçado torce pelo Fluminense; o filho, pelo Flamengo. Lembramos que "Como Ganhar na Loteria..." é de um tempo em que a torcida do Fluminense lotava um Maracanã de 200 mil. Hoje, se tiver jogo nas Laranjeiras, sobra vaga. Operando os diálogos, a mão invisível de Nelson Rodrigues (que era tricolor) não deixa dúvidas: “Ser Fluminense é uma tragédia”, diz o filho para o pai inconsolável.

No rastro de "Aeroporto" (1970) a década produziria alguns dos melhores filmes catástrofes já feitos.  "Como Ganhar na Loteria..." tem estrutura similar a um filme-catástrofe: apresenta os personagens, seus dramas e, em vez de afundá-los no Poseidon, ou chamuscá-los na “The Glass Tower”, faz com que todos ganhem na Loteria Esportiva. Exatamente isso que eu disse: todos vencem, no mesmo sorteio. Cada um pensa que ganhou sozinho a bolada de 4 bilhões de cruzeiros. E, claro, começam a gastar e agir por conta, sem imaginar que o prêmio será dividido por milhares de apostadores.

Não era incomum, nos resultados da Loteria Esportiva, que muitos apostadores ganhassem o prêmio. Também não era incomum que poucos ganhassem, tornando-se milionários. Diferente da Sena e da Quina, a Esportiva oferecia um atalho ao nirvana para os viciados em futebol. Quem conhecesse a situação dos times, os resultados anteriores, fazia um bom prognóstico. Ao mesmo tempo, alguns jogos tinham palpites tão crassos que só uma surpresa – a chamada zebra – evitava que uma multidão acertasse os 13 pontos.

Em 1967, o Cruzeiro, moeda que circulou durante 25 anos, havia perdido três zeros e passado a se chamar Cruzeiro Novo. Para piorar a confusão, em 15 de Maio de 70, voltaria a se chamar Cruzeiro, com a entrada em circulação de novas cédulas. O problema é que o comércio e o povo, em geral, demoraram a seguir o padrão de 67, continuando a usar três zeros nos valores correntes. Por esse fenômeno bizarro, não sabemos se os 4 bilhões de cruzeiros, de que trata o prêmio do filme, eram cruzeiros novos ou antigos. Provavelmente, antigos. E, convertidos para 4 milhões de cruzeiros novos, o feliz ganhador da Loteria Esportiva receberia, em valores de 2016, cerca de 40 milhões de reais. Não admira que os personagens tenham saído de si, sem atinarem o número de laureados com quem dividiriam a felicidade.

"Como Ganhar na Loteria Sem Perder a Esportiva" rendeu uma bolada, passou semanas em cartaz e foi um dos lançamentos mais vistos de 1971. Chegou a dividir, em fevereiro, mais da metade do circuito Rio-São Paulo com apenas dois filmes: "Pra Quem Fica Tchau!" e "O Donzelo". Bons tempos para o cinema brasileiro, que estava dando os primeiros passos no blockbuster da década: a comédia erótica, conhecida a partir de 1974 como pornochanchada. Mas "Como Ganhar na Loteria..." trocava a crescente obsessão pelo sexo por um culto voluptuoso ao dinheiro. Nesse aspecto, os “filmes de loteria esportiva” soam quase proféticos do futuro. Hoje, passados 45 anos, podemos dizer que foram uma espécie de avôs das moneychanchadas

4 comentários:

Unknown disse...

Acabo de ler e rever este curso da historia e do cinema brasileiro, me sinto agradecido pelo teu trabalho de refletir e nos apontar tudo isso tão esclarecedor, justo e brilhante
gracias
Sel

Anônimo disse...

Andrea, que elenco! De vez em quando arrisco o olho na Escolinha do Professor Raimundo, em exibição no Canal Viva, só para ver o Costinha. Fregolente, o preferido de Nelson Rodrigues, foi outro ator fantástico. Entre erros e acertos o filme é bem divertido e o elenco, por si só, justifica a atenção a esta pérola. Seu texto me estimulou a revê-lo. Muito bem sacada esta expressão "moneychanchada". Fiquei curioso com "O bolão", citado por você e com a presença do Taiguara. Quanto mais assisto os filmes nacionais ou leio sobre eles, vejo o que ainda tenho muito que explorar.
Grande abraço,
Márcio/MG.

Marcelo Castro Moraes disse...

Bom dia. Conheci o seu blog atraves do curso sobre a Pornochanchada e com a sua matéria sobre o filme Rio Babilonia pela revista Teorema. Se puder me siga e acompanhe o meu blog de cinema onde eu faço as minhas críticas. (blog:http://cinemacemanosluz.blogspot.com.br/)

ADEMAR AMANCIO disse...

Meu pai era fascinado por Loteria Esportiva e bolão.Me lembrei da confusão que o povo fazia com os três zeros a mais.Bons tempos.