domingo, outubro 20, 2013

Coração Materno


“Rasga-lhe o peito o demônio/ Tombando a velhinha aos pés do altar”. Vicente Celestino é papa fina. Mais do que isto: é neurotizante. Poderíamos repetir os versos de “Coração Materno” até o apagar da chama. Imaginem vocês: “rasga-lhe o peito o demônio”, o filho assassinando a própria mãe. Cousa de mestre.

Precisou o ultra-jovem ano de 1968 para “Coração Materno” virar cult. Acabou gravado por Caetano Veloso no LP “Tropicália”, com arranjo de Rogério Duprat. Mas vamos esquecer a referência hipster. Vamos à origem, às raízes do campônio alucinado, matador de genitora.

Antes de “Coração Materno”, Vicente Celestino já havia lançado bolachões de 78 rotações, rivais do “Hamlet” de John Barrymore e dos ruídos de Enrico Caruso. Conta a lenda que Il Capo quase levou-o à Europa, mas o pai de Celestino vetou.

Como era dono de companhia teatral, Celestino experimentou em “O Ébrio” um fenômeno midiático. Criou uma franquia. Primeiro compôs a música, depois surgiu a peça de teatro e, em seguida, o filme.

Mulheres desmaiavam nos cinemas, rapagões de bigodinho choravam copiosamente, imagens de Jesus Cristo crispavam os ares. “O Ébrio” (1946) foi a epítome da fossa getulista, cheio de culpa e dor social. Gilberto, o médico cheio da gaita, descia à sarjeta e tornava-se o ébrio. Aquele que “na bebida busca esquecer”.

Em termos de prospecção cinematográfica, é importante notar como “Coração Materno” (1951) repete o mesmo esquema. Já havia sido música e peça de teatro. Nas telas, repetiu também o galã (Celestino) e a diretora: Gilda Abreu. Por sinal, esposa de Vicente. Gilda era agora a co-estrela assumidíssima, salivando pelos holofotes.

E aí é que vem a novidade. Aí é que vem a danação para todos nós, idólatras do futuro, em nossas naves espaciais de Technicolor. Durante todo o filme em preto-e-branco, não há sinal nenhum de bestialidade. Não há sinal nenhum do hardcore que poderia ter feito de “Coração Materno” o primeiro filme extremo nacional.

Nada, nada. A mãezinha e o respectivo coração (arrancado pelo filho, nos versos da música) viram mera analogia. Carlos é órfão, adotado por um padre e, portanto, filho de Maria. O coração é o de vidro, no corpo da santa de gesso. O campônio é mero profanador de imagens. E só. Queríamos sangue, temos um “Meet Me In Saint Louis” do Terceiro Mundo.

Queríamos o pavor, temos Gilda Abreu de Judy Garland, entre tafetás e pulinhos, domando negros que parecem do Sul confederado, a mil léguas do Brasil. Apenas em 2003 o curta “Amor Só de Mãe” (2003), de Dennison Ramalho, assumiria as trevas da canção.

Gilda Abreu tem uma romaria rococó, travestida de melodrama no “Ébrio” (vide as cartas e a narração em off). “Coração Materno” repete essa prosódia de Gilda, escritora-roteirista, autora de best sellers até a morte em 1979, quando foi à campa com os restos do ex-esposo, falecido em 68. “Bonequinha de Seda” (1936) havia sido o ápice da diva, dirigida por Oduvaldo Viana (o pai, não o filho). Por um breve instante, Gilda conseguiu o cartaz que remoía desde o berço, embalada pelos sonhos da mãe, soprano lírica.

Passam as décadas, saem os tubos de dinheiro da Cinédia, antiga produtora de “Ébrio” e “Bonequinha”. Sem o scratch de Adhemar Gonzaga, sem a contenção por trás, “Coração Materno” ganha nas aparições do segundo time: Amadeo Celestino, irmão do protagonista. Elizete Cardoso, novíssima, murmura uma palavra ou outra. Faz parte do coro mal-ajambrado de negros.

Temos aqui, por sinal, o mesmo racismo matreiro de “O Ébrio”. Leva e Traz (Colé) balança a cabeça qual um Pai Tomás da Serra do Mar. Ladino e fofoqueiro, é uma espécie de mucamo de D.W. Griffith, sem o ódio wasp. Afinal, o esgar brasileiro é mais dissimulado.

Na estrutura, “Coração Materno” parte para lamentações econômicas. Carlos (Celestino) apaixona-se por Violeta (Gilda). Século XIX. Ele, pobre. Ela, rica. No meio, a vastidão do mundo, vasto mundo, que se fosse Raimundo seria tédio e não solução. Há o rival, há as mulheres pérfidas, há a bondade de Carlos, há a igreja. O padre amado, que ensina o papel cívico-espiritual da religião.

“Coração Materno” apela, ainda, para a cegueira de Violeta. E, quando menos se espera, surge a vitória do além. Educativa, como já era cantado em “Porta Aberta”: a música que embalou o Gilberto pré-sarjeta de “O Ébrio”. Falava dos braços de Jesus, recebendo os desgarrados no céu. Apesar dos pesares, impressiona em “Coração Materno” a cena no mosteiro, em que a canção-título é filmada com o peso de dez costados, fazendo gelar qualquer adulto mais cético.

E é com isto que chegamos ao mundo dos mortos. Dentro e fora da fita. Chegamos naquela fração antes de tudo, quando era o verbo. Nas matinês do Passeio Público, na desolação do Theatro São Pedro, no jovem Celestino, de olhos pretos, cabelo vasto como uma tocha. “Coração Materno” crava nos olhos uma carícia louca, de gente que dava dó-de-peito com a facilidade de quem bebia um copo d'água.

4 comentários:

Ademar amancio disse...

Só você pra falar dos Dotes vocais de Vicente celestino,pena que com o advento da Bossa nova,esse estilo operístico passou a ser tachado de cafona.

EMendes disse...

Aflito frente a falta de mercado para o seu canto após a eclosão da Bossa Nova, Celestino, pasmem, tentou "aderir" ao movimento, cantando "O Pato" em um programa de televisão. Ninguém - nem podia - o levou a sério!

Andrea Ormond disse...

Ademar, gosto de toda a aura em volta do Vicente Celestino. Ele me lembra o Brasil antigo, é um achado arqueológico.

EMendes, não à toa, a morte do Celestino aconteceu do modo mais categórico possível: no dia em que iria se apresentar na tv, ao lado dos jovens da Tropicália. Vicente Celestino merece uma biografia séria. A que foi escrita pela esposa não dá conta da trajetória dele.

Anônimo disse...

Parabéns pelo texto!!! A altura do cantor.