“Rasga-lhe o peito o
demônio/ Tombando a velhinha aos pés do altar”. Vicente Celestino
é papa fina. Mais do que isto: é neurotizante. Poderíamos repetir
os versos de “Coração Materno” até o apagar da chama. Imaginem
vocês: “rasga-lhe o peito o demônio”, o filho assassinando a
própria mãe. Cousa de mestre.
Precisou o ultra-jovem ano
de 1968 para “Coração Materno” virar cult. Acabou
gravado por Caetano Veloso no LP “Tropicália”, com arranjo de
Rogério Duprat. Mas vamos esquecer a referência hipster.
Vamos à origem, às raízes do campônio alucinado, matador de
genitora.
Antes de “Coração
Materno”, Vicente Celestino já havia lançado bolachões de 78
rotações, rivais do “Hamlet” de John Barrymore e dos ruídos
de Enrico Caruso. Conta a lenda que Il Capo quase levou-o à
Europa, mas o pai de Celestino vetou.
Como era dono de companhia
teatral, Celestino experimentou em “O Ébrio” um fenômeno
midiático. Criou uma franquia. Primeiro compôs a música, depois
surgiu a peça de teatro e, em seguida, o filme.
Mulheres desmaiavam nos
cinemas, rapagões de bigodinho choravam copiosamente, imagens de
Jesus Cristo crispavam os ares. “O Ébrio” (1946) foi a epítome
da fossa getulista, cheio de culpa e dor social. Gilberto, o médico
cheio da gaita, descia à sarjeta e tornava-se o ébrio. Aquele que
“na bebida busca esquecer”.
Em termos de prospecção
cinematográfica, é importante notar como “Coração Materno”
(1951) repete o mesmo esquema. Já havia sido música e peça de
teatro. Nas telas, repetiu também o galã (Celestino) e a diretora:
Gilda Abreu. Por sinal, esposa de Vicente. Gilda era agora a
co-estrela assumidíssima, salivando pelos holofotes.
E aí é que vem a novidade.
Aí é que vem a danação para todos nós, idólatras do futuro, em
nossas naves espaciais de Technicolor. Durante todo o filme em
preto-e-branco, não há sinal nenhum de bestialidade. Não há sinal
nenhum do hardcore que poderia ter feito de “Coração
Materno” o primeiro filme extremo nacional.
Nada, nada. A mãezinha e o
respectivo coração (arrancado pelo filho, nos versos da música)
viram mera analogia. Carlos é órfão, adotado por um padre e,
portanto, filho de Maria. O coração é o de vidro, no corpo da
santa de gesso. O campônio é mero profanador de imagens. E só.
Queríamos sangue, temos um “Meet Me In Saint Louis” do Terceiro
Mundo.
Queríamos o pavor, temos
Gilda Abreu de Judy Garland, entre tafetás e pulinhos, domando
negros que parecem do Sul confederado, a mil léguas do Brasil.
Apenas em 2003 o curta “Amor Só de Mãe” (2003), de Dennison
Ramalho, assumiria as trevas da canção.
Gilda Abreu tem uma romaria
rococó, travestida de melodrama no “Ébrio” (vide as cartas e a
narração em off). “Coração Materno” repete essa
prosódia de Gilda, escritora-roteirista, autora de best sellers
até a morte em 1979, quando foi à campa com os restos do ex-esposo,
falecido em 68. “Bonequinha de Seda” (1936) havia sido o ápice
da diva, dirigida por Oduvaldo Viana (o pai, não o filho). Por um
breve instante, Gilda conseguiu o cartaz que remoía desde o berço,
embalada pelos sonhos da mãe, soprano lírica.
Passam as décadas, saem os
tubos de dinheiro da Cinédia, antiga produtora de “Ébrio” e
“Bonequinha”. Sem o scratch de Adhemar Gonzaga, sem a
contenção por trás, “Coração Materno” ganha nas aparições
do segundo time: Amadeo Celestino, irmão do protagonista. Elizete
Cardoso, novíssima, murmura uma palavra ou outra. Faz parte do coro
mal-ajambrado de negros.
Temos aqui, por sinal, o
mesmo racismo matreiro de “O Ébrio”. Leva e Traz (Colé) balança
a cabeça qual um Pai Tomás da Serra do Mar. Ladino e fofoqueiro, é
uma espécie de mucamo de D.W. Griffith, sem o ódio wasp. Afinal, o
esgar brasileiro é mais dissimulado.
Na estrutura, “Coração
Materno” parte para lamentações econômicas. Carlos (Celestino)
apaixona-se por Violeta (Gilda). Século XIX. Ele, pobre. Ela, rica.
No meio, a vastidão do mundo, vasto mundo, que se fosse Raimundo
seria tédio e não solução. Há o rival, há as mulheres pérfidas,
há a bondade de Carlos, há a igreja. O padre amado, que ensina o
papel cívico-espiritual da religião.
“Coração Materno”
apela, ainda, para a cegueira de Violeta. E, quando menos se espera,
surge a vitória do além. Educativa, como já era cantado em “Porta
Aberta”: a música que embalou o Gilberto pré-sarjeta de “O
Ébrio”. Falava dos braços de Jesus, recebendo os desgarrados no
céu. Apesar dos pesares, impressiona em “Coração Materno” a
cena no mosteiro, em que a canção-título é filmada com o peso de
dez costados, fazendo gelar qualquer adulto mais cético.
E é com isto que chegamos
ao mundo dos mortos. Dentro e fora da fita. Chegamos naquela fração
antes de tudo, quando era o verbo. Nas matinês do Passeio Público,
na desolação do Theatro São Pedro, no jovem Celestino, de olhos
pretos, cabelo vasto como uma tocha. “Coração Materno” crava
nos olhos uma carícia louca, de gente que dava dó-de-peito com a
facilidade de quem bebia um copo d'água.
4 comentários:
Só você pra falar dos Dotes vocais de Vicente celestino,pena que com o advento da Bossa nova,esse estilo operístico passou a ser tachado de cafona.
Aflito frente a falta de mercado para o seu canto após a eclosão da Bossa Nova, Celestino, pasmem, tentou "aderir" ao movimento, cantando "O Pato" em um programa de televisão. Ninguém - nem podia - o levou a sério!
Ademar, gosto de toda a aura em volta do Vicente Celestino. Ele me lembra o Brasil antigo, é um achado arqueológico.
EMendes, não à toa, a morte do Celestino aconteceu do modo mais categórico possível: no dia em que iria se apresentar na tv, ao lado dos jovens da Tropicália. Vicente Celestino merece uma biografia séria. A que foi escrita pela esposa não dá conta da trajetória dele.
Parabéns pelo texto!!! A altura do cantor.
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