sábado, janeiro 17, 2015

Compasso de Espera


"No Brasil não existe preconceito de cor. Negro conhece o seu lugar."

"Compasso de Espera" (1973) poderia se perder em meio a esta frase sarcástica de Millôr Fernandes, ou em meio à hipocrisia dos chavões paternalistas que permeiam a questão do negro no Brasil. Único filme do diretor de teatro Antunes Filho, no entanto "Compasso de Espera" constrói na figura do negro "integrado", do "preto doutor", um artífice muito mais grave que o lugar-comum do reles marginalizado. 

Jorge (Zózimo Bulbul) sabe do racismo porque o enxerga em duas vias: a de dentro (é discriminado) e a de fora (convive em igualdade de mérito com seus algozes). Teve berço, oportunidades geradas por um padrinho branco, a quem tudo deve. Virou publicitário, poeta, homem da sociedade. Um "intelectual orgânico": elemento possível de transformar o mundo, pois atua confortavelmente nele.

São as escolhas do roteiro, baseado em um estudo de Florestan Fernandes, que fazem do filme, passados mais de 40 anos, ainda atualíssimo. Sim, o negro está na universidade, ocupa cada vez mais espaços que não ocupava. Porém, continua gastando sua energia vital, seu ânimo, com o fato de ser negro. Silenciosamente lhe dão com uma mão para tirar com outra. Jorge é testemunha de que nunca será branco, apesar de viver como tal.

"Compasso de Espera" é dos melhores filmes políticos já feitos no Brasil. Provavelmente o melhor. Esqueçam os cinemanovistas, as alegorias, o Eldorado de Glauber: aqui estamos em São Paulo, onde a barra sempre pesa mais. Ele se apaixona por Cristina (Renée de Vielmond), a paulista quatrocentona. É amante de Ema (Elida Palmer), a diretora de agência de publicidade. Briga com outros negros, inclusive com a irmã, que pedem a ele uma atitude de confrontamento e revolta. Nas vias de fato, ele apanha. Quer morrer. Não sabe o que fez de errado. Não sabe que está no lugar errado.

A maneira como Antunes Filho retrata Jorge em preto e branco também é política e apaixonada. Equivale a Alberto Salvá seguindo Vianinha em "Um Homem Sem Importância" ou Rubem Biáfora espiando Sergio Hingst em "O Quarto". Nota-se a influência do cinema inglês dos anos 60, do "Homem Invisível" de Ralph Ellison, de um discurso importado dos Estados Unidos que – surpresa – cai bem na realidade paulistana. Malcolm X se defronta com Martin Luther King e sapateiam em desespero no viaduto do Chá. 

O filme demorou anos para ser finalizado, com filmagens entre 69 e 70 e lançamento apenas em setembro de 75. Poderia ter sido lançado ontem: como eu disse, é atualíssimo. Tirem os hippies e coloquem hipsters, mudem a agência para a Vila Olímpia. A paulada é a mesma.

Curiosidade é ver a cantora Rosa Maria bem novinha (havia saído direto de "Hair" para o set), a nudez magrela de Renée de Vielmond e Stênio Garcia representando um homossexual, séculos antes de encarnar Bino, o caminhoneiro macho de “Carga Pesada”. Só que nada disso importa diante da escolha preciosa de Bulbul para protagonista. Exemplo de negro "integrado", casado com uma branca (a cineasta Vera Figueiredo), morador de Ipanema, Bulbul era um alter ego de Jorge e vice-versa. Na vida real, por diversas vezes foi parado pela polícia ao tentar entrar no edifício onde morava. E não duvido que alguma vez tenha sido agredido na praia, como o personagem.

Escrevendo sobre o filme no jornal Última Hora, em abril de 1976, João Carlos Rodrigues revelava que “os muros do Rio ainda estão pichados com dizeres 'viva o apartheid'”. Adiante nos conta que "num deprimente debate no MAM um jovem negro chegou a declarar que não confiava no filme por ser dirigido por um branco". O debate a que João Carlos se refere havia acontecido em 23 de março, na série Perspectiva 76Traindo o mito da democracia racial brasileira, as duas imagens cairiam bem na tela, reafirmando toda a depressão em que Jorge se exaure. 

Outra polêmica surgida na época diz respeito aos diálogos. Bulbul é dublado por Roberto Maya, um branco. E suas falas são quase sempre em tom formal, empolado. Antunes Filho se defenderia afirmando que o ator teve outros compromissos e não pôde ser utilizado na dublagem. E que a voz forçada era intencional, para denotar a insegurança do protagonista. Para finalizar, arrematou: "Através do negro quis falar de uma geração ferida, a minha geração que falou muito e nada fez". 

Apesar de não vivermos uma "experiência negra", eu e vários leitores podemos usar "Compasso de Espera" para o exercício simples de nos colocarmos no lugar do "outro". E o "outro" nem precisa ser negro. Pode ser a mulher que sofre discriminação apesar de possuir atributos iguais ou melhores que seus pares. Ou o homossexual, de quem riem pelas costas e que nunca é promovido na firma.

Não à toa, "Compasso de Espera" cortou um dobrado na Censura. Esmiuçado, acabou liberado sem cortes, mas foi fracasso de público e até hoje nunca revisto com a profundidade necessária. A solidão de Jorge, sua história, são de uma corrosão absoluta. Levanta o espelho, permanece subversivo. Para alguns, melhor esquecer e não se ver refletido.

9 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

Jamais sabia da existência desse filme.Procurarei pra ver.

Anônimo disse...

Querida Andréa, que bom que você se ocupou em escrever sobre "Compasso de Espera", que é um filme fabuloso e pouco conhecido. Acho sensacional! Sempre o recomendo a alunos e colegas, "engajados" ou não. Texto impecável com uma observação muito pertinente: "Apesar de não vivermos uma "experiência negra", eu e vários leitores podemos usar "Compasso de Espera" para o exercício simples de nos colocarmos no lugar do "outro". E o "outro" nem precisa ser negro. Pode ser a mulher que sofre discriminação apesar de possuir atributos iguais ou melhores que seus pares. Ou o homossexual, de quem riem pelas costas e que nunca é promovido na firma". Meu eterno e forte abraço!
Márcio/MG

Andrea Ormond disse...

Vale bastante a pena, Ademar.

Márcio, percebo em "Compasso de Espera" esta universalidade, que vai além mesmo da questão racial. Um grande abraço!

Anônimo disse...

Onde eu posso assisti-lo pela internet, Andreia? Sabes algum meio de acha-lo? Obrigada desde de já.
Gabriela

Anônimo disse...

Obrigado pela recomendação. Mais uma.
Por sinal, no último ano traduzi as legendas de uma série de filmes ao português. Na maior parte dos casos não tinha legendas nessa língua. Se você estiver interessada, te envio os arquivos e os links dos filmes.

Crusoe

Anônimo disse...

Acabo de assistir. Baixei do YTB. Excelente filme (do qual eu não tinha nenhuma referência).

Crusoe

Anônimo disse...

Crusoe, me passa o link por aqui, pode ser? Abraços
Gabriela

Anônimo disse...

https://www.youtube.com/watch?v=Gjns-TgMQCU

Mas também o achei em torrent. Pode se baixar do Pirate Bay, por exemplo.

Crusoe

Anônimo disse...

Por favor gostaria de saber se é nessa filme, que Eva Wilma aparece nua na praia ou é Renne de Vielmond.
Obrigado