terça-feira, março 17, 2015

O Homem da Capa Preta


Tenório Cavalcanti, político de Duque de Caxias, Baixada Fluminense. Inspirado em três livros -- “Capa Preta e Lurdinha”, “Tenório, o Homem e o Mito” e “Tenório, Meu Pai” -- Sérgio Rezende dirigiu e escreveu – auxiliado por José Louzeiro e Tairone Feitosa -- “O Homem da Capa Preta” (1986), cinebiografia do caudilho, migrado do sertão de Alagoas para os arrabaldes cariocas, que encontra no sertão urbano uma oportunidade de glória e redenção.

Em meados daquela década, o cinema brasileiro procurava novas alternativas ao modelo da Embrafilme, apontado por muitos como decadente. O Plano Cruzado estava a um segundo de dar com os burros n'água, a violência crescia avassaladoramente nas metrópoles. Eis o cenário perfeito para Tenório (José Wilker) sacar sua metralhadora, a indefectível Lurdinha, e entrar no pacotão das 40 produções que receberam o “maciço investimento de 250 bilhões de cruzeiros” da Embra 86. As filmagens haviam terminado em Dezembro de 85 e grande expectativa cercava o lançamento, que fazia parte de um planejamento estratégico contra o então hipnotizante “cinema pornográfico”, ladrão de salas em todo o país. 

Em março, “O Homem da Capa Preta” já circulava em sessões privadas no Rio e a expectativa só crescia. Mariza Leão, mulher de Rezende e produtora do filme, anunciava inclusive que estava em “dupla gestação”, aguardando a estreia e o nascimento do terceiro filho do casal.

Antes da estreia, porém, em abril a participação no festival de Gramado causou enorme e boba polêmica. Carlos Alberto Prates Correa – genial diretor de “Perdida” (1975) – disse a Rezende que achou seu filme “fascista, de direita”. Um pouco mais bem-humorado, o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos comparou o personagem de Wilker a um Exu. Mas quem colocou lenha foi o neto de Tenório, declarando que “O filme foi o salário moral que meu avô conseguiu receber por tantos anos de trabalho”. Acabaram ganhando o prêmio de melhor filme, entre outros. Cá entre nós, típica injustiça nacional, pois concorreu com “Filme Demência”, de Carlos Reichenbach.

No dia 18 de Agosto, quando finalmente estreou, todos queriam Tenório. Claro que a estreia não foi somente uma estreia: representou uma homenagem pública, com a presença de políticos e uma ovação ensurdecedora. Até eu, com quase nove anos de idade, enchi o saco do meu pai para me levar ao Roxy, em Copacabana, dias depois. Lembro que ao nosso lado, nas poltronas do gigantesco Roxy, sentou-se uma garota gordinha e com visual punk, que cheirava muito mal.

Embora eu tenha conseguido burlar facilmente a censura 14 anos, nem era preciso. Em lance arrojado, a Manchete Vídeo distribuiu a produção simultaneamente em VHS. Após tanta repercussão, parecia que o happening se esgotaria. Mas vocês não viram nada! “O Homem da Capa Preta” logo teve fôlego de ser envolvido em enorme discussão sobre a violência nas telas. Comparado a “Cobra” de Sylvester Stalone pelo diretor da Motion Picture Association -- o Fumanchu das esquerdas, Harry Stone --, o “capa preta” respondeu com enorme anúncio publicitário intitulado “Capa Preta e a Violência”, refutando Stone e se dizendo “um filme que respeita o público, emociona, diverte e faz o brasileiro gostar mais do seu país”. Ah, que lindo! Até chorei aqui, sentada em 2015.

Sibilam as más-línguas que, em pleno governo Brizola e na boca do povo, o termo “capa preta” rapidamente passou a se referir a uma poderosa trouxinha de brizola ofertada pelos traficantes da Zona Sul. Talvez seja só uma lenda urbana (duvido, em se tratando da galhofa carioca) que, no entanto, mede o grau de sucesso e prestígio que o filme representava naqueles idos de agosto e setembro de 1986. Neusinha, cria tresloucada do mandatário estadual, com certeza devia aprovar as novidades cinematográficas. Aprovava tanto que engatou um namoro com Fábio Tenório, o neto do homem e candidato a deputado estadual pelo PDT. Não foi eleito, recebendo apenas 5.128 votos. 

Em outubro, para completar o show, uma bomba de fabricação caseira explode em um cinema de Nova Iguaçu, ferindo levemente três moças. O que estava passando no momento da explosão, na sala lotada por 300 pessoas? “O Homem da Capa Preta”, lógico! Nenhuma surpresa que a história do “dono de Caxias” tenha feito quase um milhão de espectadores. Uma beleza que transformaria o jovem Rezende – de 35 anos, vindo de “O Sonho Não Acabou” (1982) – em uma espécie de “cineasta das multidões”, alguém capaz de dar ao ofício a comunicação com o grande público. Ele, por sua vez, gostava de declarar não ter nenhum pudor em “fazer sucesso”. Coisa que no Brasil, já avisava Tom Jobim de Nova York, é ofensa pessoal. 

Sob o aspecto estritamente artístico – o que menos interessava, como sói perceber – a produção havia, de fato, realizado um trabalho notável. Não pelo estilo de filmar, redondo e previsível, mas pelo cuidado visual e pela escolha do protagonista José Wilker. Ora, trata-se de um “filme de protagonista” e uma escolha mal sucedida naufragaria o resto. Wilker, no entanto, compreende bastante o animus do político-pistoleiro e, mesmo quando contracena com algumas opções caricaturais – Guilherme Karan de Flávio Cavalcanti é terrível –, impõe-se, ao ponto de ter virado a representação icônica de Tenório Cavalcanti no inconsciente popular desde então.

Por outro lado, o protagonista passa grande parte do filme sofrendo atentados – dizem que levou 47 tiros, ao todo. Em provocação, discursa: “Eu não fui eleito para ser feliz”, “Melhor a liberdade de passar fome que comer de graça na cuia do domador”. O domador de Lurdinha, também dizem, era excepcional frasista. E o roteiro aproveita tais qualidades de forma generosa. Se faltam momentos brilhantes, ao menos o ritmo bem-disposto não compromete quem esteja encantado pela reconstituição dos anos 50 e 60, joia rara de se ver nos apertos oitentistas.

Da metade para o final, pilotando um Chevrolet 58 – que pertencia ao colecionador Nelson Afonso Crisanto da Costa –, Wilker sente-se ainda mais à vontade. Tenório cria o “Luta Democrática” – “Um jornal feito por homens que lutam pelos que não podem lutar” –, de onde pululam manchetes no estilo pinga-sangue: "Presunto Podre, Farinha de Vermes! Os Venenos Que o Carioca Está Engolindo", "Pegou o Marido Com Outro e Se Suicidou". Entende que a palavra fere mais do que a metralhadora e resolve sair da UDN, se candidatando a governador do estado da Guanabara.

Uma informação mitigada que pode confundir o neófito: Duque de Caxias, reduto de Tenório, era município do antigo estado do Rio, do qual a Guanabara, atual cidade do Rio de Janeiro, não fazia parte – a fusão só aconteceu em 1975. Assim, quando resolve partir para o estado vizinho, de certa forma vivia uma aventura destinada ao fracasso. Enrola-se definitivamente ao apoiar o governo de João Goulart, o que encerra sua carreira política no golpe de 31 de março de 1964.

Esqueçam a ideia, tão propagada na época, que “O Homem da Capa Preta” era uma obra autoritária. Trinta anos depois, isso parece tão repugnante quanto as acusações de que “Tropa de Elite” é fascista e José Padilha um agente da nova direita. Em se tratando de cinema brasileiro, o lado sobrenatural tende sempre a vencer o materialista, então o único comentário digno de nota foi aquele, na noite dos tempos, escrito por Joaquim Ferreira dos Santos, observando que José Wilker parecia um Exu. Na verdade, a capa vermelha e preta de Tenório nunca estava ali à toa. Era realmente Exu e é sobre uma entidade que Rezende quer nos falar. Um trickster, na linguagem dos arquétipos junguianos. 

Tenório Cavalcanti morreu em maio de 87, poucos meses depois de toda a badalação que rondou o nome e o mito de “O Homem da Capa Preta”. Foi sepultado em Caxias, com sua beca de bacharel em Direito e acompanhado por uma multidão em cortejo. Delicioso imaginarmos muitos estando ali pela força do cinema – que, antes de ser a realização de uma obra isolada, é poderoso aglutinador de forças externas a si mesmo. Portanto, se o leitor quiser entender um filme, aconselho estudar história e as histórias que o cercam. Pelo menos esta é minha opinião. E, parafraseando nosso (anti) herói, não escrevo para ser feliz. 

5 comentários:

Anônimo disse...

Andrea,resenha necessária deste sucesso nacional.O filme recebeu na ocasião notável suporte promocional,com,por ex, matéria da revista "Manchete" entrevistando José Wilker, ladeado por simpático senhor de barba branca e boné quadriculado,o cinebiografado Tenório Cavalcanti.
Sobre o personagem-tema da obra,sugiro que procurem em sebos a (extensa)entrevista publicada em Março de 1978 pela revista "Status".Fausto Wolff e Tarso de Castro,os entrevistadores,experimentam momentos de tensão(em dado momento,Tenório declara desconfiar que estes fossem agentes do SNI),numa tarde no sítio em Caxias(a casa-fortaleza sendo morada somente da família,que o visitava,em pleno AI-5).O político cassado desfilando histórias e dando seu show de oratória,em frases que o demonstravam ainda afiado.
Wilker explode na tela,em minha opinião seu melhor desempenho cinematográfico,e assino embaixo sobre a sofrível interpretação do Karan/Flavio Cavalcanti(a entrevista da "Status" mencionando o episódio"Flavio Cavalcanti",que terminou com o apresentador na piscina "de smoking,relógio,carteira e tudo,porque não cumpriu o que tratou comigo".

Você pode não escrever para ser feliz,Andrea.
Nós,fiéis do "Estranho Encontro" entramos com a felicidade no arranjo,a cada texto publicado,ok?
Mais um belo texto,,abraços do Fernando Pawwlow

Matheus Trunk disse...

Acho O Homem da Capa Preta um filmaço. Passava muito na Bandeirantes e no finado Canal 21 numa época pré Canal Brasil. Wilker tem em Bye Bye Brasil, Bonitinha Mas Ordinária e Os Inconfidentes grandes atuações. Mas nesse filme ele parece perfeito, nasceu para o papel título. Vou correr atrás dessa edição da Status que o amigo Fernando Pawwwlow disse, afinal Tarso de Castro e Fausto Wolff são cobras do jornalismo.

Anônimo disse...

Andrea, toda uma surpresa 'As Deusas', de W. H. Khouri.

Assisti há pouco. Me fez lembrar o filme de Bergman 'Ansikte mot ansikte', que no entanto é posterior.

Quase poderia se dizer que o inferno são os outros.

Mais uma vez obrigado pelo seu blog.

Crusoe

ADEMAR AMANCIO disse...

Eu não sabia que esse filme tivesse causado tanto auê.Quando eu leio você,Andrea,eu consigo até ser feliz.

Andrea Ormond disse...

Fernando, bela lembrança da entrevista. Acho que o Tenório, no fim da vida, morava no Leblon. Era uma figura fantástica e o happening que girou em volta do filme só comprova isso...

Matheus, eu vi na época no cinema e revi agora para escrever o texto. Lembro muito que a Manchete Vídeo anunciava o VHS nas revistas do grupo Bloch. Eu era louca para comprar, mas nunca consegui.

Crusoe, prossiga no Khouri que você está no caminho certo :)

Ademar, posso não escrever para ser feliz, mas é ótimo ver os leitores felizes com a minha escrita, obrigada!!