sábado, março 02, 2013

Querido Estranho


Uma casa, três filhos, o pai e a mãe. Com estes seis elementos, “Querido Estranho” (2002) de Ricardo Pinto e Silva tenta levantar a poeira de uma família classe média, suburbana, no cosmos da Zona Norte carioca (pelo sotaque) ou das Vilas paulistanas (por detalhes nos diálogos).

Muitos copos de requeijão, pinguins em cima da geladeira e os risoles de presunto nas panças devidamente alvoroçadas. O confronto entre pais e filhos vai começar. Os fantasmas todos saem do baú. A jeripoca piará.

Maria Adelaide do Amaral escreveu a base: a peça “Intensa Magia”, adaptada, roteirizada e dirigida por Pinto e Silva. Com o novo nome, o “Querido Estranho” do cinema deixa claro que se trata de uma investigação sobre o ser espúrio (o “estranho”) que não deveria sê-lo (tinha tudo para cumprir a vocação de “querido”). Adivinhem vocês: quem, nas ilusões familiares, costuma incorporar esse exu perverso? O pai.

Alberto (Daniel Filho) é o loser, o agressor da família. Um homem pastoso, com sonhos de realeza e (ironia máxima) ourives de clientes ricos, que atestavam sua mediocridade. Alberto tentou e não conseguiu. Buscou ser alguém. Idealizou o avô artista (todo pateta almeja o falo amado, nunca superado) e perdeu.

Em “Querido Estranho”, a testosterona é cruel. A masculinidade de Alberto é negativa e se volta contra os filhos, contra a esposa. E isto apesar de Roma (Suely Franco) ficar na imagem da pureza. Uma sessentona meiga, que adoraria ter Alberto no cavalo branco, ainda que chegasse agora, aos 47 do segundo tempo, de polainas em um cinzentíssimo pangaré.

Roma despreza a filha intelectual (Teresa, Ana Beatriz Nogueira), a única que sartou fora e venceu na vida. Os outros dois irmãos chafurdam. Zezé (Claudia Netto) trabalha em escritório, sustenta os pais, veste-se com laço de fita. Se morasse em Botafogo e tivesse esgares trágicos, ganharia soneto de Vinícius de Moraes.

Na versão de Amaral/Pinto, Zezé quer simplesmente noivar. Como Betinho (Emílio de Melo), já casado. Os dois precisam de uma nova família, de preferência com um pai substituto embrulhado no pacote. Para Zezé, o noivo. Para Betinho, o sogro português.

Vestindo a peruca de libertadora, o corselet imaginário de Princesa Isabel, é Teresa quem aplica um golpe em Alberto: o sucesso profissional. Não à toa, aumenta a admiração pela filha. E assim trocam curiosidades de Rádio Relógio, citações de livros e filmes (traço recorrente na obra de Maria Adelaide Amaral). Alberto coloca Teresa acima da prole e a garota embarca na fantasia a contragosto. Sabe-se que, no fundo, o que ela mais gostaria é daquele instante em que o mundo inteiro se consumisse em luz e ela adormecesse, quieta, no colo do pai.

Tudo muito bom, tudo muito bem. O roteiro psicanalítico de “Querido Estranho” vai longe. O grande problema é a maneira com que ele surge na tela. O passado de Alberto e companhia acaba reconstruído pelas farpas das personagens, pela histeria. A ênfase está na palavra, o que apenas reforça a origem teatral da história.

Visualmente, poucos ganchos. Uma mísera jogada em que dançam valsa e os rostos de intercalam. Na prática, a cenografia assume a responsabilidade de explicar o mundo interno das personagens. Fica a impressão de que o diretor, na coxia, sussurrava para o elenco as marcações grudadas no palco. Ainda assim, apesar de tanto controle, algumas transições chocam. Alberto, por exemplo, declara do nada: “eu nunca quis ter filhos”. O público não havia sacado o jeitão diabólico do idoso. Nem a existência sórdida da família. Até então havia um clima de anedota, os diálogos indicavam alguma contrariedade, mas nada de espetacular.

Falta, em “Querido Estranho”, a pólvora do cinema. O estilo atmosférico que desse à frase de Alberto a sua dimensão vampiresca e doentia. Para chegar ali, um caminho deveria ter sido realizado. Não foi. Um outro Alberto, o falecido diretor Alberto Salvá, traduziu o confronto pai-filho no clássico “Um Homem Sem Importância” (1971). Duas pessoas, dois mundos familiares também estranhos e que, apesar de próximos, mal se conheceram.

No elenco de 2002, destaque para Suely Franco (revisitando o papel de bonequinha, que a consagrou na televisão) e Daniel Filho. Este, voltava às origens como ator e parecia feliz qual pinto no lixo. Mais do que isto, o filme deve ter inspirado alguma lembrança do Grupo Câmara, o partido cinematográfico em que Daniel e outros, como Salvá, militaram nos anos 60/70: “Querido Estranho” mirou na comédia de costumes com o recheio do drama. Esconde bons momentos, um clima naturalista e apesar de não ter conseguido a genialidade, deixa uma gosto de recreio, sem maiores mistérios.

Nenhum comentário: